http://www.facebook.com/profile.php?id=100002596731675&ref=tn_tnmn

ESF POP RUA

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Crack – dois anos de trabalho a frente de um projeto nacional


Francisco Inácio Bastos, doutor em Saúde Pública pela Fiocruz, pesquisador da Fiocruz e conselheiro da Rede Pense Livre


Em janeiro de 2013 completarei dois anos de trabalho ininterrupto (mais acertadamente, diria diuturno, pois o estudo jamais para, inclusive e principalmente nos finais de semana, que são vitais para o seu bom andamento) à frente do mais amplo levantamento nacional sobre o crack e substâncias correlatas já realizado no Brasil.
Ao longo desses dois anos, trabalhei com uma intensidade que até então não conhecia, a despeito de uma carreira já bastante longa, com três décadas de atuação nesse campo de estudos e em temas a ele estreitamente associados, como a AIDS e as hepatites virais.
Uma dúvida que sempre me é transmitida pelos mais diferentes interlocutores, desde os colegas da academia e gestores aos colegas que estão na dura batalha cotidiana do campo de estudo (as cenas de crack), e que hoje totalizam mais de 500 pessoas das mais diferentes formações profissionais, experiências de trabalho, propósitos e pontos de vista (por exemplo, colegas que atuam preferencialmente junto aos movimentos sociais, profissionais de saúde, jovens graduandos e pós-graduandos etc. e vêm atuando com diferentes atribuições, como contatar pessoas, entrevistá-las, testá-las, fornecer orientação e encaminhamento…) é o porquê de propor e implementar algo tão demorado, trabalhoso e complexo.
A resposta certamente não é o desejo de dispender algo como 90% do meu tempo, ao longo de dois anos, em algo que poderia ser resolvido de forma simples. Após mais de 30 anos de trabalho e mais de 300 artigos e capítulos/livros publicados, esse esforço constituiria certamente uma espécie de loucura, talvez mansa, mas incrivelmente cansativa e dispendiosa.
A razão de trabalharmos tanto e envolvermos no trabalho números uma ordem de magnitude maiores do que qualquer outro trabalho já realizado no país (ou seja, lidamos aqui com dezenas de milhares de questionários e instrumentos correlatos de pesquisa) e de nos valermos de métodos complexos e heterodoxos, é, antes de tudo, nossa firme convicção de que um fenômeno social novo exige a proposição e a plena implementação de métodos novos de investigação.
O crack emergiu como um fenômeno de dimensão nacional (ao menos é assim que seu consumo é percebido, em que pese a diversidade regional e local), prevalente nos interstícios das cidades brasileiras, inicialmente, de grande porte (conformando os grandes aglomerados de pessoas das assim denominadas “cracolândias”), mas também, embora com características marcadamente distintas, em cidades de médio e mesmo pequeno porte. Portanto, trata-se de um fenômeno diverso dos anteriores, até então pouco visíveis para o cidadão médio. Pudesse o falecido jornalista Tim Lopes observar uma cena de crack como me é possível fazer da janela da minha sala, enquanto ministro minhas aulas exatamente em frente às comunidades pobres do bairro em que está localizada a FIOCRUZ (Manguinhos), obviamente, estaria ele vivo.
A discussão acerca do caráter epidêmico ou não da questão jamais abandonará a esfera das metáforas, pois, tecnicamente, não é possível definir o tráfico e consumo de crack enquanto tal. Como todo fenômeno em relação ao qual não há padrões historicamente definidos, pode-se documentar que há algo novo, distinto, mas não necessariamente explosivo (o que, cabe registrar, também não é possível refutar), pelo fato de não haver qualquer definição anterior de padrão ou ritmo, para além de estudos locais, basicamente com populações institucionalizadas (escolares, pacientes de clínicas etc.).
Que se trata de um fenômeno novo, associado a novos padrões de tráfico (varejista, portanto, no polo oposto dos clássicos cartéis, que povoaram a imaginação e a geopolítica das drogas na América do Sul nos anos 1980/1990), consumo e danos (por exemplo, um achado talvez surpreendente é o expressivo declínio do consumo injetável de cocaína, e, com isso, de todos os danos e riscos associados ao hábito de compartilhar equipamentos de injeção), não resta dúvida. Portanto, não adianta tentar auscultá-lo com o auxílio de métodos clássicos, como as pesquisas com estudantes e os inquéritos domiciliares. Estes seguem sendo estratégias de relevância fundamental em todo o mundo, mas não para lidar com populações marginalizadas, sem domicílio fixo e de mobilidade extrema.
Nesse sentido, uma questão específica e que não está contemplada no estudo que venho coordenando, é a imensa dificuldade em conseguir autorização para entrevistar crianças e adolescentes cujos pais/responsáveis não são facilmente localizáveis (o que é a regra e não a exceção nesses contextos), embora praticamente todos os nossos cadernos de campo, que documentam o dia-a-dia do trabalho, registrem a presença de crianças e adolescentes nas cenas de crack.
Paradoxalmente, a mesma legislação, cuja intenção é louvável, mas precisa ser compatibilizada com a necessidade de investigar a questão, não tem impedido que as equipes que estão no campo assistam passivamente à remoção dessas crianças e adolescentes para instituições. Ou seja, na prática, existe uma dificuldade bastante maior para entrevistar essa população do que para removê-la contra sua vontade.
O emprego concomitante e integrado de métodos clássicos e inovadores de pesquisa de campo é hoje moeda corrente em todos os países líderes de pesquisa, mas seguem sendo algo estranho e mal compreendido no Brasil, onde a literatura que se vale de métodos mais modernos é muito rara e nada familiar aos formadores de opinião, sejam eles o público em geral, os meios de comunicação ou, de forma algo curiosa, os próprios profissionais que atuam na área.
Enfim, não constitui para mim propriamente uma surpresa que propostas novas se deparem com uma encarniçada resistência. Na década de 1980, ouvi de praticamente todos os colegas que atuavam na área de AIDS, que a proposta de oferecer acesso universal aos medicamentos para o tratamento da AIDS era uma rematada loucura, especialmente se esses pacientes fizessem uso do álcool ou qualquer droga ilícita. Não há porque ser diferente agora, quando apresentaremos nossos achados à sociedade e à academia.
Mas, como disse F. Pessoa, tudo vale a pena se a alma não é pequena, então, portanto, que ladrem os cães (e eles serão muitos, e bastante ruidosos), pois a caravana segue, ou, ainda no poema de Fernando Pessoa: “Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor”.